PRÁTICA DE CONCENTRAÇÃO

Circular: um círculo e um ponto — dentro
do véu concentrar à dentes
e colar defronte — espécie de colar
celestial desd’este ponto

Eis o ponto — observá-lo atento
até esquecer-se do círculo
(e todos os pontos circundantes)
retorno à Adão por um tempo

pelo sopro pelo condão — cordão
umbilical ao Éden
pelo sopro esvaziar-se:
espécie de jejum

(origem de todos os santos)

Cultivá-lo até o pulsar em espiral
mitigar a carne — pelo sopro

círculos-concêntricos (pedra n’água)

orbitar daí: o próprio centro
em movimentos contínuos
centrípetos.

HÁBITO TARDIO

Herdou da mãe um hábito tardio. Riscar ao asfalto – pés descalços – uma cruz de terra vermelha. Terminava persignando-se. Replicava o gesto pelas ruas da cidade desde o primeiro torrão à madeira.

A ARTE É (APENAS) EXPRESSÃO DOS SENTIMENTOS?

Há um problema com o ensino da arte que é: não se pode ensinar a arte propriamente dita, alcançada somente através de um misto de inspiração e transpiração (quiçá uma dose de providência), praticados à exaustão; apenas os princípios universais a nortear o artista quando muito dedicado.

Os elementos técnicos podem ser transmitidos sem qualquer prejuízo, desde interiorizado pelo mestre-professor, mas são, ainda, esquemas secos, esvaziados daquilo que o sustenta: a essência. Em outras palavras, pode-se conhecer de cor e salteado um incomensurável número de regras (por exemplo, pés-métricos, escansão, conceito de melopeia-fanopeia-logopeia, na poesia; os três atos, a jornada do herói, na ficção e por aí vai) e mesmo assim conceber obras ocas, vazias de sentido, destituídas de valores estéticos.

A simplificação do conceito artístico a mera expressão dos sentimentos, ideia de senso-comum viva na maioria das pessoas, limita o papel da arte ao entretenimento; sem valores transcendentais a sustentá-la, não poderia sobreviver senão a um breve instante, um suspiro fugaz e de nenhuma importância ao quadro maior dos conhecimentos humanos; exceto àqueles cuja emoção subjetiva seja compartilhada no instante mesmo de contato com a obra, mas nunca sobrevivendo a uma segunda inspeção.

Arte é técnica e o artista necessita da consciência plena dos seus elementos formais para executá-la com – mínima – relevância, enquadrá-la dentro dos moldes metafísicos que a amparam (arte é uma espécie de transcendência, afinal) que são universais e comum aos homens de todos os tempos. Conhecer tais princípios por detrás das cortinas aparentes é o passo fundamental para quem deseja tornar-se um verdadeiro artífice.

A ESCRITA É UM EXERCÍCIO DE PACIÊNCIA

Um dos maiores problemas do escritor autodidata iniciante é a ânsia por atrair leitores. Na voracidade do mundo virtual onde todos têm algo a dizer sobre a inquietação de saber-se prestes a morrer, valemo-nos sempre da pressa. Cada um de nós, sendo um universo particular, têm muito a expressar. Dois são os impulsos naturais ao homem: cantar e narrar histórias. Escrevemos para sermos lidos, decerto.

O problema está quando essa angústia cega-nos por completo, fazendo-nos cair num ciclo de autocomplacência que, via de regra, apenas joga-nos pelo caminho da frustração. Sempre mais fácil render-se à ideia do “gênio incompreendido”, cujo talento não é contemplado por fatores alheios a si. Essa espiral negativa, pode principiar-se de maneira imperceptível, quase nunca repleta de sinais homéricos (somos àquilo que fazemos com constância, afinal); iniciar-se com algum sentimento negativo com relação aos mais próximos, do tipo – “fulaninho não tem cultura” e escalonar para um tipo de mágoa paralisante.

A linguagem enquanto arte, e, mais, enquanto belas-artes, tem as suas próprias regras e estruturas que precisam ser assimiladas de maneira coerente por quem propõe-se a embrenhar por ela. Exige meditação diária. Naturalmente, o acuro técnico requer um alto nível de dedicação, o que tende a ser cansativo. Quando ouvimos o jargão “escrever é mais transpiração e menos inspiração” temos de ter a consciência de seu referente na realidade. Como colocado na premissa, todo e qualquer ser humano tem histórias a contar, a questão está na forma. No como expressá-la da maneira mais eficiente possível.

Aprendi – e tenho aprendido a cada dia – nesse caminho de mais de uma década aventurando-me como aprendiz da literatura pela internet que o meio eficaz para gritar “Eu estou aqui!” é oferecer a reflexão e as dúvidas ininterruptas aos confrades. Gerar valor ao próximo, mesmo se mínimo. E gerar valor para arte está em vivenciá-la desde suas entranhas e devolver ao mundo os frutos colhidos, para assim tentar ajudar a sanar a fome contemplativa de outros tantos, perpetuar as suas sementes para gerações vindouras. Pelo exemplo. Com erros e acertos.

A minha grande aliada nesse processo tem sido a paciência. Paciência com o processo – a arte tem seu próprio fuso. Paciência para comigo mesmo, como quem reconhece-se ainda muito distante do almejado, mas sabedor do valor de cada passo.

O FRUTO DE PÊNIA

i.
Dança Pênia no jardim.
Os olhos cobiçam a prudência
— deita-se Porus.

ii.
Do néctar dos deuses
(terminada a dança)
nasce Eros.

iii.
Os olhos: dois lagos
a refletir a face
e a fome de Eros.

iv.
A luz personifica Pênia
— eis a sombra aos olhos
Eros ao rés do chão.

v.
Por riachos a fome
faz enxergar miragem
— Narcisos.

vi.
Descalço Eros dança
mira o Olimpo:
suplanta a própria penúria.

QUE É UM ESCRITOR? (por Olavo de Carvalho)

Que é um escritor? É uma inteligência altamente individualizada que não se formou no idioma de nenhuma ciência ou técnica, muito menos na retórica de um grupo social em particular, mas na prática da língua geral cotidiana, apenas elevada ao seu uso mais fino e requintado.

O escritor fala “a língua de todo mundo”, apenas com um domínio técnico que vai além – às vezes imensuravelmente além – das possibilidades do usuário comum.

O domínio que ele tem da língua também não é o do gramático, do filólogo ou do linguista, para os quais ela se constitui, como todo objeto científico, de uma ocasião de passagem da experiência individual concreta às generalidades racionais da ciência.

Exatamente ao contrário, o que ele busca na língua é o uso mais individualizado que possa fazer dela, às vezes tão individualizado – como no caso de James Joyce ou Guimarães Rosa – que ele parece estar falando uma outra língua que não a de uso geral.

Nas crenças do nosso universo escolar e midiático, a linguagem das ciências e técnicas – aí incluída, sabe-se lá por quê, a da própria mídia – expressa as realidades do universo material, enquanto a da literatura apreende apenas o mundo subjetivo das emoções e sentimentos.

Mas isso é o oposto do que a experiência nos mostra. A língua das ciências e técnicas compõe-se de signos associados a significados permanentes e estáveis, sem os quais toda comunicação científica seria impossível. Essa fixidez e estabilidade são o que dão ao usuário a impressão de estar falando da realidade propriamente dita; impressão ilusória que toma a pressão da autoridade social pelo impacto da realidade. Na verdade, a conexão do universo semântico da ciência e das técnicas com o da realidade só poderia ser de identidade caso a ciência tivesse alcançado o domínio total do seu objeto, o que obviamente é apenas um ideal, para não dizer um sonho, que talvez – e muito provavelmente — não será realizado nunca.

A literatura, ao contrário, não tem nenhuma ambição de “expressar a realidade”, mas a de explorar o imenso abismo que se abre entre linguagem e realidade – ou, mais amplamente, entre o conhecer e o ser.  Eis por que a literatura pode penetrar em territórios que são inacessíveis à ciência e à técnica.

Se a linguagem científica é um vocabulário estável, ilimitadamente repetível, só utilizável portanto dentro de circunstâncias determinadas e socialmente regulamentadas, a linguagem literária é, ao contrário, a permanente abertura a toda a ilimitada riqueza semântica que nos dá uma ideia aproximada – a única ideia aproximada – do infinito que nos envolve e contém.

É lógico, portanto, que a linguagem literária não exclua a linguagem científica, mas a abranja e inclua como um de seus subcódigos. A linguagem científica, ao contrário, exclui por hipótese a flexibilidade literária, chegando a considerá-la o seu mais letal concorrente e inimigo.

A linguagem literária é, obviamente, aberta; a científica, fechada. Aberta para a infinidade de situações e nuances da experiência real; fechada para uso exclusivo na comunicação entre um grupo determinado de profissionais sobre os objetos costumeiros do seu campo de interesses.

Portanto, é óbvio que uma pessoa bem treinada na linguagem literária se adapta facilmente ao uso de quaisquer linguagens tecnocientíficas, que no fundo não são senão variações parciais da sua própria, concebidas para o emprego em contextos limitados. A recíproca não é verdadeira.

A SINA DO ARTÍFICE

Fiam-se primeiro pelas mãos de Cloto,
depois Láquesis sorteia o seu quinhão
de beleza. Fia-se tecido por
tecido e tão logo vê-se o coração.

Conhece-se o artífice pelas mãos,
em sua habilidade feito as Moiras
de tricotar com toda precisão
o destino do poema em seus detalhes.

E o fado do artífice será esse
de cuidar dos detalhes desde d’antes
e deixá-los como deve ser:
às mãos de Átropos no mesmo instante.

SOBRE OS CICLOS

Tive uma dessas reflexões existenciais que nos tomam de súbito, quando entra-se numa espécie de espiral metafísica e um mísero detalhe faz com que (re)pensemos nas questões filosóficas mais complexas e paradoxais possíveis.

A estrutura mesma da realidade é uma espécie de tensão entre polos opostos, a vida depende desse tênue equilíbrio, cujo um único movimento desarmônico poria tudo a perder. Há nisso um ritmo pulsante subjacente e contínuo que tornam todas as coisas impermanentes. Dia/noite, frio/calor, luz/escuridão, vida/morte. A eterna dança dos ciclos. Não há nada de novo aqui, Heráclito já nos dizia sobre isso. Sob esse perpétuo movimento há, também, um segundo movimento tão sutil quanto; o de retorno a uma espécie de núcleo vital, como se a vida fosse uma ação em espiral (e/ou de círculos-concêntricos).

Esses breves conceitos me serão muito úteis ao falar sobre a poesia – que é um dos meus objetivos centrais aqui. Movimento, tensão entre opostos, retorno a si mesmo (basta ver a etimologia de verso), pulsação, harmonia e etc. Tudo isso desde o ponto de vista de um aspirante a escritor autodidata e jamais um acadêmico (embora será inevitável tratá-los aqui vez ou outra). Foi meditando sobre ciclos, seus inícios e términos e recomeços que decidi retomar este blog. Regressar as origens da minha construção enquanto escritor.

O título “Poeminhos Cult” encerrava em si – ao menos na minha cabeça – certa ironia fina, um sarcasmo capaz de ser captado por outras mentes tão sagazes (ou pretensiosas) quanto a minha. Mas há coisas que funcionam apenas na mente. Descobri com o tempo a necessidade de dar ao texto as suas próprias chaves de interpretação, deixando aqui e ali as pistas para o interlocutor se encontrar entre os detalhes subentendidos e/ou as sugestões sutis (em suma: o dito através do não-dito).

Para quem está na casa dos trinta feito eu, os blogs formaram (para utilizar um termo em voga) o nosso imaginário, carregando um apelo afetivo intenso. Toda uma geração de aspirantes a escritor moldou-se através deles, sendo quase possível afirmar tratar-se de um gênero independente. Por isso, resolvi ressuscitá-lo. Aqui é um espaço para experimentações, para as tentativas e erros, o constante aprendizado prático. Além, é claro, de ter esse aspecto de aconchego, de um lugar onde podemos expressar nossa individualidade sem receios, sem podas. E esse será o meu objetivo daqui em diante, de buscar aprimorar minha dicção num contato direto com algum interlocutor que – por ventura – esteja aberto ao diálogo.

Escrevo por sentir o frêmito em meu coração no ato mesmo da escrita.